Não, nada demais não, só peguei a bicicleta e fui dar um rolê básico, queria mesmo era ter alguém pra conversar, ou talvez outros contatos corporais, mas parei logo ali na ponte do canal do São Joaquim e fiquei ali, tomando o ar da lua (que nem tava aparecendo no céu), e respirando o aroma fúnebre do lodo e dos dejetos todos que pairam ali naquele canal, que outrora já foi um rio cristalino.
Veio de lá o seu polícia querendo saber oque eu estava fazendo ali, ora, lógico que eu respondi que não era da conta dele, e não é mesmo, nem da conta dele e nem de ninguém! Mas foi mais ou menos assim óh:
- Boa noite, moça...
-Moça não, senhora.
-Posso saber então oque a senhora faz aqui parada e sozinha a essa hora da noite tamanha segunda-feira?
-Não senhor, isto aqui é a rua, tenho direito de ir e vir a hora que eu quiser, sou uma cidadã brasileira.Quer mesmo saber? Eu estava rezando!
- Mas aqui é perigoso, a senhora não deveria vir rezar sozinha por aqui.
(Pensei com meus botões “mas eu não posso nem fazer a “lost” em paz, que inferno.) E respondi mansamente:
-Não estou só, nunca ando só, já falei, estava rezando... O moço tá desocupado e resolveu me atrapalhar né? Olhe seu guarda, eu vim pra cá por conta própria, não estou fazendo nada de mal a ninguém, só quero ficar aqui parada, olhando os carros passar, só quero ficar pensando um pouco na vida, pode ser?
-Mas senhora, meu dever é...
-É oque? E por acaso o senhor acredita mesmo que eu não sei qual é o seu dever? E por acaso o senhor não acha que eu também não sei dos meus direitos? Mas que inferno de mundo é esse que nem na beira da porra da vala a gente não pode ficar sossegada um instante? Moço, se o senhor quiser mesmo trabalhar porque não liga pra sua unidade e não pergunta se está tudo bem por lá, se estão precisando de alguma coisa, olhe moço, estou aqui porque sou uma mulher falida, se eu fosse muito bem sucedida estaria ocupada contando dinheiro em algum lugar bem fechado.
-Ah então a senhora está aqui procurando dinheiro? Está esperando alguém especial... desça da bicicleta com as mão para cima e me dê seu documentos...
-não, obrigada.
- Como assim “não, obrigada”.
- Bem... quando disse isso estava apenas te dando uma resposta negativa e sendo gentil e educada com um policial que insiste em ser irritante e preconceituoso e vem interromper o único momento do dia que eu tinha só pra mim! Moço, meus documentos ficaram em casa, moro logo ali adiante, e tem mais uma coisa – Você não tem o direito de me baculejar!
- A senhora está em atitude suspeita, e eu estou de serviço até meia noite.
-Suspeita de que? Pode me explicar, por favor? E o senhor, heim... onde é o seu posto? Qual é o seu nome? Quem são os seus superiores? O senhor teria um cigarro pra me arranjar?
- EU É QUE PERGUNTO! Tá tentando me enrolar, não fumo, olhe eu quero saber quem é que está por traz dessa sua atitude de ficar aqui parada sozinha, isso aqui é ponto de assalto, de prostituição é um lugar de....
(comecei a chorar)
-Senhora as coisas estão piorando pro seu lado. Quero saber oque a senhora está fazendo aqui, tava toda engraçadinha e agora tá chorando.
(subiu um fogo pelo meu pescoço e respondi gritando)
- Tô chorado porque não tenho nada! Aaaaaiiiii moço, me dá um abraço! Não tenho ninguém me esperando nem aqui nem em nenhum lugar! Não tenho trabalho, não tenho drogas e nem sou prostituta, não tenho amor, não tenho amigxs com quem nesse momento eu possa conversar, não tenho nada! Na-da! Estou em crise, não vejo sinais possíveis de sociabilidade nessa cidade, entendeu? Sou só uma mulher falida, livre e falida o senhor me entende? Lá dentro de casa só tem tédio e um mote de gente hipócrita falando porcaria nas redes sociais, eu não tenho um centavo e estou preocupada, minha casa não existe, moro de favor, olhe moço... eu poderia estar num lugar melhor, mas parei aqui na beira da vala, porque sai pra dar uma pedalada e pegar um vento na cabeça, sabe moço...Me identifiquei com essa vala entupida de lixo, mulher falida FOI OQUE EU DISSE, eu só queria ter alguém pra conversar, mas o senhor não tem conteúdo! Que inferno de formação foi essa que lhe deram? Vocês só conseguem ver gente suspeita, isso aqui é a rua, moço, ru-a! Local público, porra!
- Se a senhora continuar gritando eu vou entender isso como um desacato...
- Desacato? Poxa eu to pedindo um abraço! Não seja cruel, mas taí, mete ficha! estou péssima e o senhor, me chamou de suspeita, pô cara, teu Círio foi bacana? Tu tá de boa com a tua família? Tu gosta dessa profissão?
- Querida minha vida pessoal não lhe diz respeito.
- Em primeiro lugar, eu não sou “querida”, todos me odeiam, em segundo lugar, a minha medíocre vida também não lhe diz respeito! Ou tu és melhor do que eu? Deve ser né, ou deve se achar melhor do que eu nesse caralho, tem essa farda, tem esse salário de merda, é homem, é branco, tá a serviço do Estado, que te oprime, mas é teu patrão, tem arma, munição, é justo isso? Sou apenas uma pobre senhora, mas olha só como são as coisas, sou eu quem paga todos os teus privilégios, o senhor trabalha só porque pessoas como eu existem, sabia? Me faça um favor que horas são?
- São 11:55... senhora, pare de chorar por favor...
- O senhor tem um lenço? Está na hora de terminar seu expediente.
- Não tenho lenço. Que? Meu expediente?
- Sim, tu que disse que tava de serviço até meia noite...Mas que tipo de policial é esse? Como assim não tem um lenço? Me fez chorar, me humilhou aqui, e agora que já está hora de terminar o seu expediente sim, vai me deixar aqui com a cara cheia de catarro!!! Incompetência tem limite, mano... Olhe vou indo embora.
(Ele começou a deixar escapar um sorriso)
- O senhor me disse que seu expediente terminaria à meia noite, já deu sua hora, eu preciso voltar pra casa, deixei minha filhinha dormindo. Muito obrigada pela companhia, pena que o senhor não tenha assunto que preste para dialogar com uma pessoa como eu, se quiser ver meus documentos vai ter que ir comigo até minha casa, mas se me baculejar eu lhe denuncio.
- ... Nosso dever é...
- Não estão cumprindo muito bem, se estivesse de boa com o seu dever teria percebido que sou apenas uma mulher indefesa.
Ele estendeu a mão para me cumprimentar, enquanto dizia:
-Por favor não chore, a senhora é tão bonita.
fiz um sinal negativo com a cabeça e em seguida um positivo pra indicar ... é... bem, não sei bem oque eu queria indicar, me recusei apertar a mão dele afinal não somos amigos, ele não teve capacidade pra isso.
De fato, ele tinha razão, aquela encruzilhada costuma ser bem perigosa mesmo.