Isabela do Lago

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Belém, Pará - Amazônia, Brazil
A natureza da coisa arte em minha trajetória ocupou lugar no que se diz opção profissional, nem sei dizer nada a respeito de vocação pois nunca ouvi o tal "chamado". Por toda a minha vida tenho cercado o ato de produzir imagens, sejam elas desenhadas, pintadas, fotografadas, filmadas, dançadas, cantadas ou aquelas que figuram mundos internos nas almas imersas em situações nada concretas, a realidade vem a partir da leitura de quem se presta ao ato existir. Intuição, paixão e o nada me tocam neste viver o sentimento criativo desde que sinto coisas que não vejo e procuro transformá-las em algo visível e para que isto aconteça vivencio a criação no momento dela - e depois a esqueço.

domingo, 14 de março de 2010

Gente líquida em águas de mariana

Foi uma longa viagem a de voltar para casa esta noite. Eu vinha de barco, mesmo estando a bordo dum ônibus Marex Arsenal. Vinha de barco.
E nesta longa viagem eu olhava pela janela do ônibus (que era barco) e não via os carros, não via os prédios, não via a rua. Durante quarenta e alguns minutos eu ali, dentro do ônibus, sentada.
Imóvel e Surda na aparência. Dançando e cantando na consciência.
É que por dentro eu tinha um grito, dois suspiros e um sorriso. Nem sei dizer se isto foi uma embriaguez ou se estava mesmo atuada, mas posso afirmar aqui para todos que fui tomada por alguma espécie de tranze quando fui ao teatro Cláudio Barradas assistir ao espetáculo “Águas de Mariana” do Grupo Experimental de Teatro GeMtE, e quero com esta escrita compartilhar minha alegria e propor que vocês troquem de coração comigo, assim como propôs uma das atrizes ao público durante o espetáculo, afirmando que nossos corações todos pulsam iguais e no som do toque do tambor na mina, como pulsa o coração da cabôca Mariana. Durante o espetáculo, as atrizes desmontam repentinamente e dirigem-se ao público para relatar experiência pessoais, falar sobre a pesquisa, ou oferecer um aluá, e em seguida voltam como se nada tivesse acontecido.
No desenho de cena há um enquadramento verticalizado, muito comum na configuração dos terreiros, que dispõe tambor e abatazeiro ao fundo, e o público acomodado nas laterais, direita e esquerda, para que ao centro, bailem os deuses e as deusas. Nesta montagem também há um apelo multisensorial com odores e sabores peculiares a umbanda, mas entra neste jogo também o recurso audiovisual que contribui para a socialização das falas de pais e mães de santo a respeito da fabulosa entidade. Tudo muito bem resolvido cenicamente, exceto a luz, esta um pouco problemática em relação ao desenho de cena, pois unifica demasiadamente os planos, vê-se o tudo e o nada deixando a leitura visual direta e didática demais, achei que não deu muito o clima da encantaria que é sempre muito misteriosa.
O trabalho de corpo das “Marianas” é digno da cabôca: Fluência firme, extensão e tonicidade bem marcada com uma alternância entre os níveis posturais em plano alto a médio, raramente usam o plano baixo (levitação incomum na dramaturgia contemporânea). E como se não bastasse, duplicam a figura da entidade que antes era princesa, depois de encantada é arara e marinheira. Nem viva nem morta, paira entre o céu das matas e a imensidão do mar e de vez em quando entra num corpo de alguém para ter a vivência terrena da ritualística amazônida.
Nesta multiplicação vertiginosa de duplos artaudianos, as duas atrizes interpretam a mesma personagem dialogando entre suas faces profanas uma metáfora de mãe que sacraliza a figura da mulher brasileira com autêntica poeticidade cabocla, e muito distante daquela visão de mãe da santa Maria sempre no céu, que segundo as vozes cristãs emprenhou sem sexo, entregou toda a vida ao próprio filho e sofreu muito por vê-lo sendo crucificado, e depois disso? Eu não sei responder o que aconteceu, sei que ela virou santa e foi pro céu, e olha para baixo com o olhar sempre piedoso a seus filhos.
Em mariana, há uma mãe que desce a terra para cuidar de seus filhos, olha-os nos olhos, sorri, dança, canta sua postura é sensual, elegante, vaidosa, alegre e austera constantemente se afirmando na dignidade feminina absoluta e inabalável ela é marinheira, segura o leme e não deixa o barco virar!
Tão encantada quanto tantas mulheres que conhecemos no nosso dia a dia, ela cura e aconselha nossa gente sempre tão carente e abandonada, talvez isso faça de Mariana uma das entidades mais cultuada nos terreiros. Em cena, as atrizes mostram a mariana curandeira que é uma arara cantadeira, deixando a gente chegar perto dos segredos da mata, ouvindo pássaros, catando folhas e voando com os pés no chão. A outra, é a marinheira revoltosa, que viveu horrores da guerra e devastação de seu povo, enfrenta as marés, as tempestades e tem o poder de guiar vislumbrando sempre os horizontes.
“Águas de Mariana” me fez pensar no quanto é importante que a gente se reconheça na cultura popular através da arte, e no quanto ainda precisamos trabalhar muito para vencer as barreiras do preconceito amazônico, e que bom que tem gente poetizando nos cultos afro amazônicos e revigorando nosso precioso conhecimento herdado de gerações outras sem medo, sem amarras, sem sensuralismo disfarçado, diante de um mundo de estereótipos e artificialidades dos grandes veículos, com a face desnuda dos véus da mediocridade capitalista, e sim como a vontade e a força de nos afirmar cultural e socialmente com as bênçãos da cabôca Mariana.

Espetáculo “Águas de Mariana”
Realização do Grupo Experimental de Teatro GeMtE
Hoje às 20 horas no teatro Cláudio Barradas – Quem vai de branco paga meia entrada.

Ficha Técnica

Marianas: Keila Sodrach e Lú Maués
Consultoria Cênica e concepção de figurinos: Aníbal Pacha
Direção Musical: Edson Santana
Preparação Corporal: Guilherme Repilla
Design de Luz: Neuton Chagas
Iluminação: Milton Aires
Maquiagem: Cláudio Didima
Arte, Filmagem, Fotografia e Vídeos: Emerson de Souza
Preparação Vocal: Vilma Monteiro
Confecção de Figurino: Sheila Gomes
Francisco Leão: Desenho
Design gráfico: Jesus Brabo