Isabela do Lago

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Belém, Pará - Amazônia, Brazil
A natureza da coisa arte em minha trajetória ocupou lugar no que se diz opção profissional, nem sei dizer nada a respeito de vocação pois nunca ouvi o tal "chamado". Por toda a minha vida tenho cercado o ato de produzir imagens, sejam elas desenhadas, pintadas, fotografadas, filmadas, dançadas, cantadas ou aquelas que figuram mundos internos nas almas imersas em situações nada concretas, a realidade vem a partir da leitura de quem se presta ao ato existir. Intuição, paixão e o nada me tocam neste viver o sentimento criativo desde que sinto coisas que não vejo e procuro transformá-las em algo visível e para que isto aconteça vivencio a criação no momento dela - e depois a esqueço.

sábado, 25 de agosto de 2012

3 ou 4 passos fundamentais para que uma niña se transforme numa Mulher Líquida

Há 3 anos quando fazia um trabalho do coletivo Resistência Marajoara em Soure, Marajó e conheci a narrativa da Sucuriju, uma princesa que ajuremou-se, encantada ela transformou-se numa cobra gigantesca, hoje esta entidade paira entre o fundo do rio Paracauari e os cultos da encantaria sagrada e trabalha na linha de cura. Desde então, compreendi que a dinâmica das nossas raízes culturais estão repletas de água, e de toda a simbologia que todo este aguaceiro amazônico carrega. Descobri também, que nossas princesas não têm absolutamente nada haver com o modelo pueril de princesinha encantada dos contos europeus, que se mantém linda e passiva à espera do príncipe encantado, e mesmo assim, isso ainda reside nas consciências, nas atitudes de muitas meninas. Como, na altura, eu trabalhava no atendimento de mulheres em situação de risco por causa da violência doméstica, isso tudo me tocou bastante. Penso que existem problemas sociais que as mulheres precisam superar, este modelo comportamental que nos é ditado precisa ser superado, todos e todas já sabemos, mas o que fazemos para dar a volta nisso tudo? O pensamento da cultura tradicional popular amazônida é um pensar pleno de vida e de reinício da mesma, um pensamento que não polariza o existir entre vida-morte, feio-bonito, bom-mal, e sim um solvente deste existir onde oque antes era vida-acontecimento transmuta-se em corpo, plantas, bichos, cheiros e águas, águas diversas donde brotam os seres encantados que vivem a existência média, que é um tipo de virtualidade que não estamos habituados a aceitar, a compreender, uma vez, um pajé de Soure me explicou que “os encantados não estão mortos mas tbm não estão vivos, estão flutuando”. Pra mim isso é a coisa mais poética que já ouvi em toda a minha vida, porque, ocidentalizados que somos sofremos com uma orientação de pensamento cristão-aristotélico-platônico, mas não costumamos lembrar, ou mesmo saber, que aqui já existia outro pensar, onde a idéia de verdade não é clara, tudo muda com o tempo, como mudam as árvores, as flores, o vento, a posição do sol, o nosso corpo, nada carece de verdade absoluta, nada é fixo e imutável, até a alma dos sacerdotes e sacerdotisas sedem lugar a outra alma e isso é o pleno exercício da liberdade, aí paira a arte e seus variados códigos. Escrevi este projeto pensando nas mulheres das comunidades de terreiros, nas mulheres marajoaras, pensando nas pessoas que carregam suas raízes apesar da forte urbanização e do afastamento da natureza. Inscrevi em todos os editais possíveis, foram-se 3 anos de solidão e quase desespero. Até que resolvi mudar, permaneci com a pintura das minhas sacerdotisas, nas portas, nas coisas que encontro no lixo, onde jaz toda a podridão da sociedade que vivemos. Descobri que no caos da vida urbana de Belém, no distanciamento da natureza e das raízes cultuais de seu povo existem mulheres artistas que não se submetem a determinados comandos comportamentais e que reagem fazendo arte de qualidade e com um ímpeto de autonomia que merece ser observado com mais atenção –merece ser absorvido enquanto poesia líquida –líquida, no sentido da não- vulnerabilidade de quem se molda a padrões da cultura artificial de consumo da atual modernidade (tal qual as mulheres marajoaras que carregam sua cultura ancestral mesmo depois de séculos e séculos de repressão por parte da colonização branca), assim, fui em busca desta princesas encantadas que transforma-se em criaturas horrendas para defender a vida, aqui estamos e não somos lenda isso é poesia. Comecei a margear festinhas e amigos de amigos de amigos de estudantes de arte, sempre trabalhei fora do circuito “dito” oficial de Belém, nunca tive aproximação com salões e bafafás deste meio, sempre fiz intervenções de rua e pintura em casa, mas comecei a jogar trabalhos meus nas redes, blogs e espaços possíveis onde a mídia tática me permitiu, e comecei a dialogar virtualmente com pessoas para montar este grupo, comecei a dialogar com esta galeria para pedir a sessão do espaço, eu precisava ter algo nas mãos para oferecer às pessoas, a essas artistas, a maioria não me conhecia, foi mais fácil do que eu imaginei, acreditem! Com a entrada das meninas no grupo, tudo foi mesmo muito maluco, as origens eram diversas, os olhares eram o mais plural possível, então carecíamos de um consenso e não de uma forma de democracia, que parte de princípios dissonantes de hierarquia, mas isto aconteceu naturalmente, com o tempo e a vivência e as discussões que nos permitimos ter, o consenso, sem saber exatamente o que era o foco do projeto nos deu liberdade de atuação, eu nunca contei pra elas do meu objetivo nascido na tradicionalidade do pensar caboclo, elas só foram conhecer as portas numa das ultimas reuniões, eu só convidei pra uma coletiva e mandei um projeto que não dizia muita coisa, eu não queria ninguém se moldando a uma proposta central, eu queria mesmo a diversidade dialogando, o olhar feminino plural das Icamiabas urbanas. E todo mundo achava que eu estava falando do Baumam, quando na realidade eu nunca o tinha lido. A partir do momento que revelei nunca ter lido, imediatamente as meninas começaram a questionar a proposta deste autor, e isso pra mim foi muito divertido, já éramos líquidas sendo livres, daí surgiu o “Líquidas sim, maleáveis não”. Além de enfrentarmos o difícil exercício do consenso dentro do grupo, passamos a sentir necessidade dele externamente, e agora? No paradigma local da produção artística há esse consenso? Nossa sociedade está preparada para o pensamento plural na arte? Carecemos de estrutura mínima para a livre circulação de nossas obras (e quando falo de circulação não falo EXATAMENTE de mercado!) Podemos contar com um consenso entre galeiristas, críticos, curadores, gestores de espaços museais, imprensa, entidades da sociedade civil e público em geral? Temos esta estrutura localmente? Prefiro acreditar que podemos chegar lá um dia, mas sinto informar que não vamos chegar lá nos acomodando e aceitando práticas panelísticas e joguinhos político-institucionais que teimam em privilegiar grupelhos de amigos e parentes e descartar toda e qualquer possibilidade do livre pensar. Precisamos acreditar que movimentos novos e necessários podem ser criados a partir de outros movimentos. Pra finalizar: Acredito mesmo que o nascedouro da imagem plural não pode vir de outro lugar que não seja das manifestações da cultura popular tradicional, das nossas raízes, o cerne do ‘diverso’ na obra de arte só pode vir destas relações e que isso seja respeitado não como folclore, porque a ideia de folclore é absolutamente branca, patriarcal e opressora das tradições do povo amazônida, senão fica o Erudito pelo não DITO e a gente perde nosso direito de fruição artística para ter uma relação de ‘mercado’ com a arte. Eu não vendo carimbo nem pato no tucupi, nem tacacá com açaí porque não tenho nenhum contrato com empresas de turismo. Eu quero outro lugar para o respeito à diversidade do olhar das Mulheres Artistas Amazônidas. Isabela do Lago.