Isabela do Lago

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Belém, Pará - Amazônia, Brazil
A natureza da coisa arte em minha trajetória ocupou lugar no que se diz opção profissional, nem sei dizer nada a respeito de vocação pois nunca ouvi o tal "chamado". Por toda a minha vida tenho cercado o ato de produzir imagens, sejam elas desenhadas, pintadas, fotografadas, filmadas, dançadas, cantadas ou aquelas que figuram mundos internos nas almas imersas em situações nada concretas, a realidade vem a partir da leitura de quem se presta ao ato existir. Intuição, paixão e o nada me tocam neste viver o sentimento criativo desde que sinto coisas que não vejo e procuro transformá-las em algo visível e para que isto aconteça vivencio a criação no momento dela - e depois a esqueço.

sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

A FÁBULA DO PEIXINHO DOURADO, DANDARA DOS PALMARES E O CUTITIRIBÁ DO CURUÇAMBÁ


Desde muito cedo, eu já era menina de caminho, de caminhar demais, de morar longe demais, de precisar andar demais, e de andar demais mesmo quando não precisava. Acredito na força do pé sustentando o corpo contra o chão, acredito no caminho, porque o mesmo caminho caminhado muitas vezes me leva à paragens diversas.
Curuçambá? Conheço bem aquele setor, me criei andando naquela quebradas, desde quando aquela quebrada nem quebrada era, antes ali havia uma totalidade de árvores, bichos e igarapés, antes mesmo que viessem famílias e fincassem ali, residências rurais, pequenas roças de quintais largos, e depois veio a urbanização e fragmentou a natureza convertendo-a em ruas de piçarra e amontoados de barracos: paisagem sufocada, sem suspiro entre uma habitação e outra, sim, você já deve ter visto isso por aí em algum lugar, pois este é o meio de violência geográfica mais comum aqui por essas bandas, onde a ordem é suprimir, comprimir e compartimentar, para excluir, massacrar, empobrecer e a isso, pois, chama-se progresso. Daí a bandeiragem do “ordem e progresso”.
Como levo a vida a jornadear, noutro dia retornei ao Curuçambá e me assustei com o tamanho da ponte de concreto que ergueram sobre o igarapé que eu e meu irmão chamávamos de “curva do cutitiribá”, exatamente porque aquele espelho dágua era rodeado pelas sombras de dezenas de pés de cutitiribá, tem gente que chama cutiti, já comeu cutitiribá? Não? Já ouviu falar de Dandara dos Palmares? E da Lei 10.639/03? Não? Então chupa que não é de uva.
Voltemos à ponte, sobre aquilo que era igarapé, e ganhou uma tubulação enorme de concreto e agora serve de depósito de dejetos. Quando criança eu saía de casa e subia pelo beco do 'sangue-areia', me esgueirava entre cercas de arame farpado, pegava o linhão da eletronorte e guinava pela mata à direita, ali a juquira e a tiririca era altas, minhas pernas não se cortavam, porque aprendi a cerrar bem os dentes (para evitar o corte da tiririca sobre a pele, trinque os dentes, funciona!), o desafio era chegar à feira do curuçambá com vida, e ainda cedo a tempo de comprar leite fresco, oque era muito difícil, pois ali reinavam cobras de todas as espécies e peçonhas que se pode imaginar. Bem eu não sei precisar o tempo que levava nessa caminhada, mas sei que saíamos de casa antes do primeiro raio de sol, e chegávamos lá já pelo meio da manhã com o sol bem alto, um belo dia, meu irmão resolveu que queria me mostrar um peixe dourado que achou no igarapé do cutitiribá, que era um peixe lindo e brilhante e que o bicho conversou com ele, acho que eu tinha uns 8 anos de idade, e meu irmão, tinha uns 9, e quando se está nessa faixa de idade, peixes falam, cobras cantam, folhas dançam, bem, isso faz parte da minha realidade, ou da construção dela, até hoje converso com os animais, mas, siga comigo que a estrada é longa.
Não encontramos o tal peixe dourado, como também, depois de muitas horas banhando no igarapé e comendo cutitiribá, não encontramos o caminho de volta, acabamos indo pelo lado errado, não encontramos mais o mercado e pedimos ajuda a um senhor já bem velhinho numa carroça que nos ajudou a voltar para a rua Dona Ana. Desde então, voltei muitas vezes por ali, durante toda a minha infância, adolescência e parte da vida adulta, já nesta ultima fase, evitando certos horários, para não me deparar com nenhuma “desova” de cadáver, caminhando sempre, assisti à derrubada das árvores e dos meus companheiros de caminhada, quanto mais a paisagem mudava, mais amigos e amigas de infância eram executados, e o cutitiribá foi se tornando um fruto cada vez mais raro, meu irmão teve ainda muitas visitas do peixe dourado em seu sonhos, o bichinho pedia a ele que voltasse lá, ele deixou de ir lá porque o local estava cada vez mais perigoso, eu desobedecia sempre que podia, voltava sempre lá, mas comigo esse animal nunca deu sequer uma palavra.
Eu já tinha 21 anos quando entrei na universidade, e um belo dia, voltando da aula, vi o ônibus “curuçambá UFPA”, resolvi apanhar para voltar para casa, já tarde da noite, a essa altura o Curuçambá já era um bairro perigoso na concepção da maioria das pessoas, eu não conseguia encarar esse fato, queria mesmo era voltar por aquele caminho, e com a mudança da paisagem, me perdi novamente, já passava das 10 da noite quando vi uma movimentação na porta de uma casa, parecia uma agitação atípica, tomei coragem e fui até lá, tentei pedir um copo dágua, na verdade eu queria pedir ajuda, informação de como voltar à rua Dona Ana, quando me deparei com uns gritos lá dentro, era uma mulher parindo, sim, nasceu uma menina diante dos meus olhos, junto àquela mãe e bebê, haviam duas velhas e mais umas três crianças bem pequenas, ofereci ajuda, fiquei por ali a noite toda, afinal, num lugar onde eu só tinha notícias de morte, presenciar um nascimento era uma dádiva! Voltei para casa ao amanhecer, e muitos amanheceres tem se passado desde então.
Há poucos dias voltei ao curuçambá, fazendo uma pesquisa sobre a implementação da Lei 10.639/03 (que torna obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira nas escolas), e descobri que a identidade da juventude e infância desses estudantes têm sido lesada, fraturada e grande parte da responsabilidade desse problema é justamente dos professores que nunca comeram cutitiribá nem tampouco falaram com peixe na infância.
Primeiramente, nessa dita escola, quando eu perguntava se existem casos de racismo, discriminação racial na escola, todos os educadores e alunos respondem que não, posteriormente, em perguntas mais profundas acabavam todos falando do caso de Dandara, que não se chama Dandara, a apelidaram assim e esqueceram o nome dela, uma mocinha negra de 16 anos de idade, que é capoeirista e que não tem assistido às aulas, e vem queixando-se de sofrer discriminação na sala de aula, por isso ela vai à escola todos os dias, deixa a mochila na cadeira e fica sentada no corredor da escola o dia todo, e perguntando ainda mais, não, ninguém nunca interferiu na situação porque acreditam (em uníssono) que seja “malandragem”, que ela está se prevalecendo do lugar de vítima para não estudar. Tá vendo? Esse povo que não conversa com peixe não consegue ter imaginação, sempre esse mesmo discurso querendo criminalizar o oprimido.
Tanto fiz, que um dia, finalmente conheci a moça, e de fato ela é bem diferente das outras moças da idade dela ali naquela escola, Dandara usa tranças nagô nos cabelos, nenhuma maquiagem, muitas pulseiras e colares com as cores da Jamaica, brincos enormes, e fala muito bem, articula-se com muita facilidade, tem até um vocabulário diferenciado das outras meninas. Como a encontrei na hora da saída, ela me disse que não poderia conversar porque estava indo para casa, então, a acompanhei até sua casa, fomos conversando no caminho, como disse lá no início, sou mesmo uma mulher de caminho, é com o pé na estrada que minha vida se faz vida, encontrando parceiragem boa de conversa então, aí é que eu me faço mesmo, infelizmente não tenho tanta melanina quanto Dandara, mas estou acostumada com a sofrência do sol, caminhávamos ainda quando toquei no assunto do racismo, debaixo daquele sol escaldante do meio-dia, ela me disse que rasgam o caderno dela, riscam os livros, jogam a mochila dela no chão e a rejeitam nos grupos por acreditarem que ela é uma “drogada”. Eu perguntei: “Como você sabe que as pessoas pensam isso de você?” Ela me respondeu: “No dia que trancei os cabelos, perdi o direito de assistir aula em paz, então não assisto aula, estou esperando os professores me reprovarem por falta.”
Quando chegamos na porta da casa de Dandara, tive a impressão de já ter estado ali, pedi a ela um copo dágua (aquela água que não consegui pedir há 16 anos), não só pela sede física e calor, mas pela sede de capturar minha própria memória, bebi a água lentamente, e finalmente perguntei a idade dela, que me respondeu ter 16 anos. Imediatamente perguntei onde ela havia nascido, ela me respondeu que nasceu ali mesmo, naquela casa, pensei: “Será que eu vi Dandara nascer?” Não sei, a mãe dela não estava em casa, por isso não me senti à vontade para estar mais tempo ali, pensei em voltar ali um dia para tirar essa dúvida do meu coração, mas também talvez eu continue esperando o peixinho dourado vir me visitar nos sonhos, mas minha decisão foi retornar à escola e ter uma conversa séria com a equipe de educadores, e assim fiz. O teor do diálogo? Coisas do tipo: “você já comeu cutitiribá? Já ouviu falar de Dandara dos Palmares? Conhece a Lei 10.639/03?” As respostas foram “Não”, eles desconhecem a fruta, a história e a lei.
Sim, o resto da conversa já se pode imaginar, e sim, sou uma mulher de caminho, acredito que o mesmo caminho revisitado muitas vezes pode levar à paragens diversas.

Isabela do Lago