Isabela do Lago

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Belém, Pará - Amazônia, Brazil
A natureza da coisa arte em minha trajetória ocupou lugar no que se diz opção profissional, nem sei dizer nada a respeito de vocação pois nunca ouvi o tal "chamado". Por toda a minha vida tenho cercado o ato de produzir imagens, sejam elas desenhadas, pintadas, fotografadas, filmadas, dançadas, cantadas ou aquelas que figuram mundos internos nas almas imersas em situações nada concretas, a realidade vem a partir da leitura de quem se presta ao ato existir. Intuição, paixão e o nada me tocam neste viver o sentimento criativo desde que sinto coisas que não vejo e procuro transformá-las em algo visível e para que isto aconteça vivencio a criação no momento dela - e depois a esqueço.

segunda-feira, 11 de março de 2013

POR NÓS MUITOS AQUI



Antes pergunto-me algo: qual é o papel do macho branco direitista do alto do topo da hierarquia institucional na produção de arte contemporânea? A instituição que institua, aos papéis, carimbos e assinaturas. A questão aqui é metafísica, ancestral e artística, a mim cabe a legítima felação memorial.

Não vou mentir nem enfeitar, há uns quantos dias andei por aí com um chamado dentro das oiças, ou era dentro do coração? É difícil explicar como certas coisas sopradas em brisas intuitivas, num instante viram um temporal, porque mulheres como eu, vindas de gerações e gerações de mulheres miseráveis pretas e pardas fomos acostumadas a sistematizar e aceitar documentações formais, não sei se me faço entender. Espero que ninguém entenda mesmo, mas eu não ouvia nem via, eu sentia um chamado longe que vinha de dentro de mim.

Em meio a toda euforia do vernissage da exposição “Nós de Aruanda”, ali no meio mesmo da festa, sem querer, ou mesmo querendo, Hanavalona veio posar pra uma foto comigo e passando uma das mãos no meu ombro, falou assim de um jeito muito firme: “vamos fazer um 'v' de vitória, porque afinal conseguimos não é?”

Ela nem imagina que gelou meu espinhaço naquela hora, tudo na minha frente desapareceu, apenas uma imagem me acontecia, a imagem desta fotografia de minha bisavó, Lila, eu desde criança vejo esse gesto dela como um mero charme ou gracejo, mas agora entendi, Dona Lila, era o 'V' de vitória que Hanavalona me pedia, bem, tudo na vida é vivência. Experimenta, tudo é experiência – isso precisa ser aceito por nós no momento do desatar desses nós.

Eu mergulhei nesse chamado surdo e sem voz e me danei a refletir por estes dias, tudo se mistura dentro de mim deixando esse rastro de guimbas e fuligem, de tanta coisa que já se queimou por aqui por essas paragens, como o fogo e o papel na ”mandinga”, instalação de arte oracular de Kátia Haadad só que eu não estava numa onda de futurar, e sim de passadear, era sim, eu tava mais perto do “te lembra do teu nome de caboco?” com essa pressão mesma da memória afetiva de Jurema que homenageava Pai Caduca. Tava mais pra lá do que pra cá, imersa em tanta coisa que tava ali na montagem, que não eu era eu, mas que era meu. Ou melhor, era eu sim, tem eus espalhados em cada detalhe daquela exposição, e tudo se encaixou como uma luva, aquelas obras dizem muito mais de mim do que minhas próprias pinturas.

Noutra ocasião já expus sobre a vida de meus avós paternos, vô Edmundo – curandeiro e parteiro do Piauí, vô Aldenora, que ninguém nunca descobriu sua terra de nascença, chamavam-na de velha Turca, porque quando encontrada na estrada das Contendas, tinha menos de 6 anos, estava quase morta, era branca, nariguda, de olhos azuis e falava uma língua muitíssimo estranha, depois ela passou a falar a língua portuguesa do Piauí, foi gentilmente criada por uma família que a adotou, ali mesmo em Santa Bárbara das Contendas, terra de quilombo em Cocal no sertão do Piauí. Agora penso em Lila, com tanto amor quanto penso em minha própria filha, a história de Lila (ela só passou a ter registro e sobrenome depois de casada, antes ela era apenas Lila, ou nêga Lila) essa memória me chama.

Mas porque isso? Pra que invocar tanto essa gente morta? Acho que Lila nunca morreu, ela encontrou Aruanda... é ela que me chama com esse 'V' de vitória há quase 200 anos, não sei contar direito esse tempo. Sei que ela nasceu do bucho de uma velha escrava no Rio Grande do Norte e simplesmente saiu sozinha andando pelo mundo aos 12 anos de idade, ninguém sabe contar muitos detalhes da história dela, nem ela sabia exatamente onde ia, sabemos que ela queria ir pra algum lugar bem longe das surras, longe da violação sexual, longe da fome, um lugar mágico com uma casa pra morar onde se pudesse dormir com a chegada da lua e despertar com o raiar do sol.

Ela chegou aqui em Belém já adulta, casou-se com um cearense, ocuparam um terreno e ali plantaram e colheram por toda a vida, ela pariu 8 pessoas, ajudou a cuidar as netas, dentre elas, minha mãe e minha tia Alcina, a quem repassou o conhecimento que sua mãe também havia lhe repassado.

Lila faleceu perto dos 90 anos de idade, gostava muito de festas, batuques e folias, já muito velha não conseguia mais dançar mas se conformava “a modi que serená a festa”. Certa noite contra a vontade do marido, a danada esperou todos adormecerem e saiu madrugada adentro cortando o matagal, mais uma vez, errante e sozinha em busca de algo, ela saiu do barracão dela que ficava ali pelo bairro do CDP em direção à Avenida Dalva, na Marambaia, naquele tempo não havia estrada, tudo era matagal, no caminho arriou um toró e Lila caiu num igarapé (onde hoje é o canal do São Joaquim, pertinho aqui onde eu moro, eu carinhosamente chamo Rio Lila) a correnteza foi mais forte e dali só encontraram seu corpo uns dois dias depois.

Todos tem uma história pra palmilhar a cidade onde vive, essa é a minha história. Se abandonarmos por vez a oficialidade, podemos sim rebatizar simbolicamente essa Belém, o jogo de afirmação cultural que permeia a existência através da arte, é o jogo da relação empírica com o lugar, nem de longe pode ser confundido com qualquer tipo de ofensiva ou discurso de ódio. Será que só por não reafirmar a história branca já pressupõe um gesto violento?

Há de fato por aí, uma meia dúzia de artista meia boca de meia tigela bancando a cena de altos cargos na gestão cultural que não conseguem pescar nadinha de arte, nadinha da cultura popular do próprio povo que representa, come açaí com tapioca e arrota estrogonofe de contra-filé, mas não tem um pinguinho assim de paciência para o pensamento contraproducente decente contemporâneo. Acha que tudo tem que ser limpo, alvo e liso e não se permite meter o dedo mindinho numa fímbria sequer das camadas mais populares, essa gente, é arrogante, sorridente e preconceituosa, corresponde-se conosco por intermédio de ordens ditatorias de censura, mas na hora de deliberar cadê que tem culhão pra assinar documento?

Refiro-me diretamente a intenção de censurar a exposição do registro de ação poética de Arthur Leandro no elevado Daniel Berg, que rebatizou-o como Elevado Exu de mãe Celina. Quem não se permite ter no currículo sequer um “modi que serená a festa” jamais vai se deixar compreender esse tipo de atitude, e isso pra um gestor cultural não é bom nem mal, é péssimo, vergonhoso e criminoso.

Mas aí, óh, deixa pra lá a culpa é de quem não explicou direito, foi um mal entendido, é melhor assinar o atestado de inteligência medíocre do que ter de assinar documento de censura, sim porque atentar contra liberdade de expressão artística é crime. Mas não, por favor, abafe o caso, tudo foi problema de interpretação. Interpretar é criar imagem, e quem cria tem imaginação, o diabo é aceitar esse tipo de imaginação maldosa e preconceituosa, aceitar e deixar rolar, ou simplesmente colocar a culpa do erro nas costas de uma outra pessoa, e aí vai, deixa assim o erudito pelo não dito e sempre quem leva o tombo é a cultura preta, sim já que o problema foi de in- ter preta-ação, assim literalmente, ter ação de preto in institucionalidade dá mesmo problema, inclusive quando se fala na figura de Exu, com esse histórico demonização deste orixá pelo povo cristão através de séculos.

Exu não adormece, ele percorre ligeiro e astuto de um lado a outro, instaura o conflito no momento exato em que um nó da percepção precise ser desatado, até que você possa por fim perceber. Percebeu? Tá tudo aí, tudo há, somos plurais, exatamente como evoca a obra de Rodrigo Barros, os caminhos agora estão abertos “siga”.

Isabela do Lago, bisneta de Lila e coordenadora de montagem da Exposição "Nós de Aruanda-artistas de terreiro"



quarta-feira, 6 de março de 2013

Nós de Aruanda - Artistas de Terreiro

fotografia de Samantha Silva & Tatyane Silva Seria uma galeria de artes visuais um espaço de branco? E perguntamos se seria desse branco que é um 'branco' que ao mesmo tempo dá o sentido ao pálido da pessoa e ao significado político da palavra. A pergunta é necessária, pois esta exposição é uma homenagem, uma celebração à memória da luta de Dona Rosa Viveiros, ou Nochê Navanakoly, ou Mãe Doca, negra mulher e maranhense de Codó, que apenas três anos após a abolição da escravatura enfrentou o racismo, preconceitos da época e inaugurou seu Terreiro de Tambor de Mina na capital paraense. A partir dos 18 de março de 1891 ela foi presa várias vezes porque tocava tambores e cultuava as divindades africanas com as quais preservava as tradições de matriz afro-amazônica, e nem por isso desistiu de manter aberto o terreiro que dava lugar à manutenção das tradições de sua origem negra africana. A consciência negra foi o que motivou Mãe Doca a enfrentar os desmandos da polícia e o poder constituído em alicerces racistas e discriminatórios. Aruanda é uma referência ao porto de São Paulo de Luanda, lugar de onde partiam os negros sequestrados e trazidos ao Brasil na condição de escravos, e a referência que ficou na memória coletiva como o lugar onde se encontraria novamente a liberdade que vinha com as lembranças do continente de origem. Luanda, Aluanda, Aruanda, o Tempo, que é divindade de Angola (do mesmo porto de Luanda), muda a palavra e muda também a semântica, e de uma referência geopolítica, Aruanda persiste hoje no imaginário afro-brasileiro como uma espécie de paraíso que habita cantigas de brincadeiras de roda, jogos de capoeira, rezas e cantos religiosos, as manifestações de cultura popular e outras situações em que os povos negros têm importância na construção da cosmologia do lugar e do seu povo. ”Nós de Aruanda – artistas de terreiro” dá título para a exposição e brinca com os sentidos que essa expressão pode ter: de quem, ou de quais nós, nós estamos falando, quem somos nós? Talvez o que queiramos seja nos debruçar sobre esses enlaces emaranhados desses nós que, ao fim, se traduz na busca por conhecer esse rico universo numa perspectiva diferenciada: a produção poética e os estudos universitários como ferramentas para conhecer, descobrir, divulgar e defender a riqueza das culturas tradicionais de matrizes africana e suas correlações com as muitas Áfricas que (re)inventamos no Brasil, com esta exposição também celebramos o 18 de março da primeira resistência à prisão, celebramos Mãe Doca e toda a resistência dos povos de terreiros no Pará. Pode ser que agora, no século XXI, tanto a capital paraense quanto as artes visuais sejam sim um espaço legítimo de ocupação do 'negrume' amazônida, mas também é latente que, assim como os terreiros nos espaços públicos, ainda é invisível a produção artística paraense que coloque em evidência as questões sócio-culturais desse mesmo “ser afro-amazônico”. O que apresentamos nesta coletiva são práticas artísticas do cotidiano das culturas da diáspora que recriam algumas dessas diversas Áfricas amazônicas, apontam para a pluralidade de entendimentos sobre a arte e que em comum trazem um forte viés emotivo baseado na coletividade, no cotidiano dos terreiros, nas lutas políticas por direitos de cidadania, na política afirmativa, nas práticas ritualísticas, na memória afetiva e na memória de vida como elementos essenciais para a construção de mundo que resulta na poética desses artistas, assim como para a compreensão teórica para a construção dos paradigmas estéticos afro-amazônicos - uma futura estética que tem a potência da estética diversificada e construída pela experiência plural negra e brasileira nesta região, e que indica vínculos a elementos socioculturais africanos e amazônidas. Belém/PA, março de 2013. Grupo de Estudos e Pesquisa Roda de Axé. Serviço:Nós de Aruanda- Artistas de Terreiro” Abertura da Exposição: dia 08 de Março das 19 às 22:00 horas. Galeria Theodoro Braga – Centur. Visitação: de 11 a 22 de março 2013. 14 de março, quinta - 16h sessão de cineclube; das 17:30 as 19h performance musical de Mãe Rita ; 19h Roda de conversa com os artistas e pesquisadores envolvidos no projeto. Pauta: Processos criativos nas comunidades de terreiro. (OBS, neste dia está prevista sessão solene pra povos de terreiro na ALEPA, previsto para as 9h da manhã). Contatos: Lideranças de Terreiro/artistas: - Mametu Nangetu – 8806 73 51 / 32267599; - Kátia Haadad – 88223937/82206238; - Katia Jurema Sousa – 88840453; - Ysa Mota – 83029044; - Samanta Silva – 8056 72 63; - Alex Leovan - 4009-3263 ou 8155-8366; - Rodrigo Ethnos – 8265 12 69; - Tata Kinambogi (Arthur Leandro)- 9933 30 77. Pesquisadores/ coordenação: - Hanavalona Falayola – 8168 62 52 - Isabela do Lago – 8310 48 38 - Hirley Muriel – 87187207;